A Revolução de Alberto

Sabe aquele lance de mini flash-back gigante dos Normais? Pois é, não tem nada a ver com o que vou fazer agora. Na verdade, o que entra em cena é um FF de 17 anos e um texto escrito durante a pós de Jornalismo Literário de 2008. Um breve adeus à Carla de 11 anos e uma breve aparição da jornalista de 28. Espero que gostem do texto. As fotos são do colega Wesley Costa, do jornal Hoje.



Trótrótrótrótró. Sobre três engradados de coca-cola, um senhor de cabelos grisalhos e 1,60 m de altura arqueia os ombros para alcançar a tomada que fica atrás do freezer de tampa vermelha. Mãos diligentes e olhar atento, Alberto Cavalcante de Souza, 67, liga o liquidificador Walita e começa a encher o recipiente com gomos de pimenta de cheiro – que rodopiam, rodopiam e acabam por mesclar suas tonalidades de verde e amarelo. São pouco mais de quatro da manhã. Se algum vizinho apareceu para reclamar do trótrótrótrótró? Nada! Todos os concorrentes e clientes de Seu Alberto ainda estão na cama. Supõe-se. Suponho.


O sexagenário, entretanto, desde as 3h30, mantém-se em atividade. A postos no Mercado Central de Goiânia, Alberto começa os preparativos para fazer os quitutes que já lhe renderam até uma alcunha: “O Rei das Empadas”. A fama, demasiadamente repetida em matérias de jornais, nem de longe consegue retratar parte da essência desse homem. Que não é um simples vendedor de salgados. Tampouco um aficionado pelo mundo das artes – como denunciam as dezenas de fotos com artistas em sua banca. Alberto é pai. Ex-marido. Avô. Filho de um homem que trabalhou com Pedro Ludovico, fundador da nova capital goiana; um dos rebentos mais mimados por dona Joana. Goianiense de nascimento; carioca na alma. Companheiro. Um quase guerrilheiro...

Peraí? Um quase guerrilheiro? Exageros da autora à parte, é. No ponto comercial de seu Alberto, uma foto. O rosto, meio azulado. O fundo do quadro, branco. A imagem, o fotografado, o personagem? Bem, não te prometo uma empada em caso de acerto – claro, você vai descobrir ao longo do texto, bem como tantas outras peculiaridades da vida de seu Alberto, mas é que não posso ir revelando segredos alheios, assim, de bandeja, logo no terceiro parágrafo... Enfim, sem promessas de iguarias, espero ao menos propiciar uma leitura capaz de abrir o seu apetite, e não apenas no sentido literal...

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Cada um no seu quadrado

Pode ser que o transeunte mais desatento – ou o mais faminto, neste caso - que passe pela Rua 3, no Centro de Goiânia, se deixe seduzir por aqueles dizeres escritos com giz branco em uma lousa preta. “Pão de queijo + café = 0,80”. Um pedestre mais afortunado talvez seja convencido pela cartolina branca, letras vermelhas, adiante: “Salgado + Kuat = 2,20”. Agora, quem realmente conhece a região não acha dispendioso andar alguns metros para saciar a fome. O destino é um prédio cinza, três andares, com portão e detalhes na fachada amarelos. Maior e mais antigo da capital goiana, o Mercado Central, fundado em 1950, tem 6.787 metros quadrados de área construída. Mas é um espaço bem menor dentro dele que atrai um contingente considerável de consumidores durante todos os dias da semana, das 7 da manhã às 18 horas. Acertou. É a banquinha do seu Alberto uma das mais badaladas do local, que, segundo a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico (Sedem), tinha 103 permissionários no mês de maio de 2008.

Num quadrado de três metros de largura por quatro de cumprimento, seu Alberto trabalha desde 1986 - antes, o mercado teve outras duas sedes: na Rua 4, onde hoje está o Pathernon Center, e no camelódromo do Centro. Em ambos, tal qual ocorre nos dias atuais, o senhor moreno de olhos miúdos garantiu o seu sustento vendendo empadas e pastéis; é certo que não com as linhas de expressão que atualmente tomam conta do seu rosto. Pelo contrário, era o ar da meninice que o acompanhava quando saía de casa, no Setor Vila Nova, para aprender com a mãe a se “virar” no mercado. Década de 1950 e dona Joana Hipólito de Almeida comercializava produtos hortifrutigranjeiros. Alberto, feito homem, entraria para o ramo de salgados.

Aconteceu assim: o sétimo dos dez filhos de dona Joana com o esposo Amâncio Cavalcante Sousa, Clóvis, tinha uma banquinha de pastéis. O irmão mais novo Alberto, o nono da “escadinha”, comprou o ponto.

- O valor eu não lembro, não. Deve ter mais de 40 anos, foi antes de eu casar. O mercado ainda estava lá na 4.

De “Só Pastel” para “Empada do Alberto”. Embora não exista letreiro oficial, todo mundo reconhece o nome fantasia, outorgado pelos próprios clientes. A transformação, que não excluiu a venda de pastéis, antes incrementou as opções do cardápio, foi possível graças à receita de uma senhora da cidade de Goiás, que ensinou o jovem a fazer o salgado mais famoso da terra de Cora Coralina. A mestre tem também uma banquinha no Mercado Central, praticamente ao lado da do seu Alberto. Se lá tem o mesmo movimento do que o da loja do ”pupilo”? Com a palavra, os clientes:

- É essa aqui, não é, a banca que você vem? - Pergunta uma moça, acompanhada de duas amigas, apontando para o ponto do seu Alberto.

Sinal de positivo feito por uma delas, dúvida dissipada, o pedido: duas empadas de frango e uma de bacalhau.

- Ô empadinha deliciosa! - Exclama outra jovem, pele morena, logo após receber o troco de seu lanche. A moça também esteve no local na primeira sexta-feira de junho deste ano, dia 6.

- Ah, seu Alberto, vai, conta o segredo...

- Na culinária, cada um tem um toque especial – faz diplomacia.

Então tá. Mas fui atrás desse “plus” que difere a empada dele das demais – só no Mercado Central são várias as banquinhas de salgado em um mesmo corredor.

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Santa, arruda e sinal da cruz na madrugada

A pequena movimentação que começa a tomar forma no interior da casa de muro rosa-pêssego e portão branco, localizada bem à frente de uma igreja adventista, no Setor Vila Nova, não consegue romper o silêncio da Rua 208. São três da madrugada, primeiro de julho. Vias ainda desertas, frio “suave” para o inverno, e escuridão que só não se esconde de fachos intrometidos ao cenário noturno. Mas que começam a surgir. Alberto Cavalcante acende a luz de seu quarto. Levanta da cama, onde na cabeceira três retratos enfeitam a parede e lhe lembram dos laços familiares. Atravessa a pequena sala de parede rosada, apinhada de quadros florais e de paisagens européias, e entra na suíte de Dina para tomar banho. Para os mais distantes, Sabina Cavalcante, 65, sua irmã caçula.

Da arara que acomoda suas roupas, a escolha do dia: calça jeans um pouco folgada, camisa pólo salmão e tênis branco da Penalty com rajadas em azul marinho na lateral. Seu Alberto não esquece os detalhes: prega um pequeno broche de Nossa Senhora Aparecida na camisa e esborrifa no corpo um pouco de Yves Saint Laurent. (Ele é apaixonado por perfumes. Segundo Dina, são dezenas de frascos).

- Alberto, quer que eu passe o spray no seu braço? – indaga Dina.

- Pode deixar; eu passo.

- Deu distensão (no direito), por causa do frio do freezer e do calor do forno - explica ela, em tom suave, quase maternal.

“Antes de a nossa mãe morrer, ela me pediu que cuidasse do Alberto, mesmo eu sendo dois anos mais nova do que ele. Ela tinha um carinho todo especial por ele, o caçula dos homens. Na verdade, posso ser considerada a terceira mãe. Tinha a Francina também, que cuidava da gente quando éramos pequenos e a mãe trabalhava no mercado.”

Minutos depois, ele pega o telefone branco sem fio.

- Bom dia. Por gentileza, minha filha, um táxi aqui na Rua 208, número 466, da Vila Nova. Por favor.

- Obrigado.

Não passa muito tempo até que o farol de uma Parati, da Rede Bandeirantes, ilumine o portão branco.

- Vão com Deus! Vou orar por nós - despede Dina.

Alberto pega com a irmã duas sacolas verdes e uma branca de plástico, que contêm verduras. São encomendas para a outra irmã, Tereza, que vai passar no Mercado Central.

No corredor do quintal, seu Alberto tira uma folhinha de arruda do vaso que está ao lado de outras dezenas de plantas, e a coloca na orelha direita. Antes de entrar no táxi, faz o sinal da cruz.

- Oi, companheiro. Bom dia.

- Bom dia.

- Vamos rodar - diz, bem humorado, um tom atípico para quem acorda às 3 da manhã. Há mais de 50 anos.

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Sabor apreciado até por Fernanda Montenegro

Dez minutos de viagem, R$ 8,90 de acerto, entrada do Mercado. Seu Alberto bate com o cadeado no portão amarelo para acordar o segurança.

Boa tática, a primeira vez que fui ao local de madrugada, para entrevistar seu Alberto, fiquei batendo palmas, bem leves, e chamando pelo seu Tião, o vigia daquele dia, 6 de junho. Claro, demorou bem mais para que notassem a minha presença.

Alberto cumprimenta Fabiano, o segurança de plantão, e segue para a banquinha.

- Olha! O meu primeiro cliente - brinca, ao se deparar com o gatinho preto malhado de branco, ainda sem nome, que há cerca de cinco meses o espera na porta do trabalho.

- Ele me viu chegando e já vem para cá - continua, antes de abrir a portinha do fundo, onde, no metal azul, há a inscrição “Ler é luz”.

“O Alberto sempre gostou de ler, sempre teve essa tendência. Já fez curso de inglês, francês. De nós todos foi o que mais teve gosto por essas áreas”, revela Vicente Cavalcante de Sousa, 77, mesmas feições, porém estatura maior do que os 1,60 m do irmão mais novo.

Já dentro da banquinha, Alberto deixa as sacolas – as encomendas para Tereza - na bancada lateral onde fica a máquina de passar pastel junto com um forninho Dako. Ajoelha no piso de azulejo branco, levanta as duas mãos e sussurra:

- Obrigado, Nossa Senhora Aparecida, por mais um dia, pela saúde, pelo trabalho. Abençoe todos aqui com paz, saúde e muita fé no coração.

Antes do batente, mais um ritual. Alberto pega um potinho de sal grosso e joga o produto no chão, do lado onde os fregueses se acomodam nos seis bancos de metal, estofados nas cores vermelho, verde e laranja. Há dias em que ele também coloca incenso de canela em locais estratégicos para aromatizar o ar. A explicação? Tem não. Aliás, a resposta está centrada na sabedoria popular.

- Já ouviu aquele ditado? - De poeta e louco...

Ah, só para constar. A banquinha de seu Alberto também tem plantas comigo-ninguém-pode e espada de São Jorge.

Início da labuta. Duas panelas grandes de alumínio no fogão industrial de quatro bocas, cuja porta do forno precisa ser sustentada por um cabo de vassoura; sacolinhas contendo frango desfiado e cebola retiradas do freezer. Alberto abre o armário debaixo da pia, pega uma faca, corta o saquinho e pó! – nunca fui boa com onomatopéias (basta reparar no início deste texto), mas foi mais ou menos esse o barulho que a cebola fez ao cair na panela.

Pimentão, alho com pimenta, cheirinho delicioso de tempero. Testemunha de toda a movimentação do senhor de cabelos grisalhos, o gatinho sem nome permanecia entre as grades amarelas fincadas na rampa que leva ao segundo piso do Mercado Central.

- Ele quer uma bolota de carne. Mas ainda não tem nada - explica Alberto, relógio preto redondo da Rado tirado do pulso esquerdo - eram por volta das 3h40 - e jogado na bancada lateral (há também, no ponto, uma bancada perto da pia).

E com passos curtos, porém firmes, mãos ágeis, porém delicadas, o comerciante imprime ritmo ao local de trabalho. Faz recheio e massa das empadas, prepara o trigo para o quibe, limpa a estufa, organiza o balcão de atendimento e... E também passa café para servir aos clientes, ao vigia, aos donos das outras banquinhas que ainda irão chegar, aos guardinhas das Casas Bahia - localizada próxima ao mercado, na Avenida Anhanguera - ou a algum (a) repórter que resolva aparecer no meio da madrugada para entrevistá-lo...

Pretexto para entrevista, aliás, não falta. Até o olhar mais incauto que passa pela banca de seu Alberto fica curioso ao se deparar com as dezenas de quadros que adornam o local. São dois blocos de arranjos (um mais ao fundo do ambiente), afixados no cano preto que perpassa o teto laranja. Tem recortes de matérias com Fernanda Montenegro, Cora Coralina e Glauber Rocha; fotos de Marilyn Monroe e Carmem Miranda; de políticos goianos (entre estes, Pedro Ludovico, fundador da capital e patrão do pai de seu Alberto); dos quatro filhos de Alberto (Juliana e Alberto Júnior, já falecidos, Paloma, 26, e Amâncio, 30); e de vários artistas, como Marília Pêra, Maria Fernanda Cândido, Bibi Ferreira, o cantor goiano Marcelo Barra e o maestro da Orquestra Sinfônica de Goiânia, Joaquim Jayme, que conheceu Alberto ainda menino, no mercado da Rua 4.

Em grande parte dos retratos, seu Alberto aparece ao lado dos atores e atrizes que admira. O mundo das artes, assim como o das empadas, é algo intrínseco à história desse homem. O comerciante já participou de diversas oficinas de teatro. Inclusive foi em uma delas, no Rio de Janeiro, que conheceu Fernanda Montenegro. A diva, junto com Jorge Amado, Zélia Gattai - que morreu em maio deste ano -, Lucélia Santos, entre outros, está no rol dos famosos que provaram o sabor das empadas de Alberto. Dourada em seu exterior, por causa da gema do ovo caipira utilizada antes de assar, e farta em recheio.

- Se não fosse vendedor de empadas, o que o senhor seria?

Breve pausa.

- O que eu seria? Estaria envolvido com artes cênicas. Seria ator, diretor, ou qualquer coisa assim.

- E quando começou essa paixão pelas artes?

- Ainda menino. Eu tive o prazer de conhecer Procópio Ferreira, prazer de conhecer a, a.. Já é a segunda vez que eu não consigo lembrar o nome dessa mulher; ela foi ex-mulher do, do... Vou lembrar o nome dela.

Com voz serena, ele prossegue:

- Tive o prazer também de conhecer Margot Fontaine na reestréia do Cine-Teatro Goiânia, vi Bibi Ferreira em Gota da Água. Sou apaixonado por artes cênicas, principalmente o teatro, acho uma coisa fantástica. Sabe por quê? Porque ali, no palco, as pessoas fazem tudo aquilo que fazemos e não gostamos de dizer que fazemos. O ator dá vida àquilo que a sociedade faz, e eu acho isso muiiiiito, muiiiito, muiiiiiito lindo, muito forte, muito bonito.

Quase no fim da conversa, que ainda enveredou por temas como literatura, família e relacionamentos:

- Ah, Antes que eu me esqueça, Cacilda Becker.

- O nome da...

- Atriz.

- Ah, bem que o senhor falou que ia lembrar...
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Continua abaixo:


Comments

Anonymous said…
Carla, que legal, acabo de acessar pela primeira vez o seu blog vejo que vc virou uma jornalista literária de fato. Esta história, rende heim, gostei muito, depois v olto aqui para papear.
Carla Lacerda said…
Obrigada!!! Só queria poder agradecer nominalmente, rs. É que você se esqueceu de assinar o comentário...