Sobreviventes do césio 137 - Ferida na mente

Depois do desastre radioativo, Wagner Mota Pereira “virou cigano”. Morou no Parque Ateneu, em Goiânia, em Anápolis (levou um irmão para tratar de esquizofrenia na cidade), Pirenópolis (município onde seu pai mora), e novamente Anápolis, onde está desde 2005. “O que me sustentou psicologicamente foi ficar longe das lembranças do acidente”, revela o homem de 40 anos que, no olhar e no jeito, ainda carrega resquícios daquele menino franzino de 19 anos.

“Mas hoje vi que fui bobo de ter ‘corrido’ das pessoas. Porque se a minha cabeça ficou legal por um lado, por outro me prejudicou. Mas eu não tinha estrutura naquela época. Eu só tinha 19 anos! E ainda tive de lidar com o fato das pessoas acharem que eu era o culpado”, desabafa.

Wagner continua: “E aí veio o problema nas mãos (a esquerda com quatro dedos atrofiados e um amputado) e no pé (o esquerdo ficou lesionado). Eu já era tímido, e com esse defeito físico, aumentou o meu isolamento. Eu tinha vergonha de comer num restaurante, por exemplo. Mas eu podia ter virado o jogo, né?”


Ele tenta virar o jogo. “Acho que agora, aos 40, estou assimilando o acidente. Hoje, sim, entro e saio em qualquer lugar, converso”.

- Wagner, você é mesmo pastor?

- Na verdade, não fui consagrado pastor. Mas meu chamado é de pastor e missionário.

- Como começou sua relação com Deus?

- Conheci Deus no acidente. Eu poderia estar pregando tudo o que Ele fez por mim, poderia estar firme, rocha, mas... Eu vacilo muito. Eu acho que Ele está esperando eu ficar mais velho, amadurecer...

-... eu reconhecer realmente que pra fazer o que eu tenho que fazer pra Ele, preciso anular a minha vida.

Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me. (Mateus 16:24)

- Acho que é isso. Preciso ficar firme numa igreja, né. Pregando, dando testemunho, falando o que Ele fez.

Wagner se lembra de 87:

Eu ia morrer, tinha infecção generalizada, ouvi o médico dizer que não tinha jeito. Mas vi quando uma fumaça entrou no meu estômago. Fui curado por Deus. Tinham levado cinco caixões de chumbo para o Marcílio Dias (hospital). Eu seria a quinta vítima.

A conversa, que enveredou pelo lado da fé, também teve teor material. Na verdade, começou por aí. Wagner está ansioso para que se torne realidade a decisão da 6ª Turma do Tribunal Regional Federal (TRT), de outubro de 2007, que determinou aos sete réus responsabilizados civil e criminalmente pelo acidente que paguem uma pensão a ele e a Roberto, no valor de quatro salários mínimos mensais (R$ 1.660). A decisão vale até o aniversário de 70 anos das vítimas e é retroativa a 1987, ano em que eles encontraram a cápsula do césio abandonada entre os escombros do antigo Instituto Goiano de Radioterapia (IGR).

Segundo explica, o processo foi dividido em dois – um corre em Brasília e o outro em Goiânia. “De Brasília tenho a receber R$ 198 mil e, de Goiânia, cerca de R$ 1.150.000. São os valores das pensões atrasadas”, comenta. Ele diz que o dinheiro ainda não saiu porque os réus entraram com recurso.

A responsabilidade criminal da tragédia foi julgada na década de 90, quando os médicos Orlando Teixeira, Criseide Dourado e Carlos Bezerril, donos do antigo IGR, bem como o físico responsável pelo manuseio da bomba de césio 137, Flamarion Barbosa Goulart, foram condenados a três anos e dois meses de prisão em regime semi-aberto por homicídio culposo (sem intenção de matar). Em 2000, a Justiça apontou os réus do processo civil: Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), o Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Goiás (Ipasgo), o médico Amaurillo Monteiro de Oliveira – antigo sócio do IGR – e o físico hospitalar Flamarion Barbosa Goulart.

Enquanto aguarda a decisão da Justiça, Wagner continua com sua rotina: acorda por volta das 10 horas, almoça em casa, toma seu suco de rapadura e de raízes, resolve pendências da casa ou do carro – além de um Uno, tem um Tempra. Ele, que já foi dono de um lavajato e de uma fábrica de fogão, vive das três pensões que recebe: uma do governo estadual, no valor de R$ 950; outra do federal, no valor do salário mínimo (R$ 415); além da aposentadoria de R$ 415, referente à época em que trabalhava antes do acidente.

“Eu tenho sonhos. Quero ter uma casa própria, um carrão – ‘já pensou? vítima, todo mundo te deu como um zero à esquerda e, de repente, vê você... num Bora, ou Fusion, ou C-4 Palace’. Mas também quero fundar um Centro de Recuperação para Drogados e Loucos”. Wagner diz que recebeu um recado sobre este montante em dinheiro. “O Senhor, por meio de um profeta, já me avisou: ‘Ai de ti se não cumprir o que você me prometeu. Ai de ti’”.

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Odesson Alves, o Adelson. Crédito: Demian Duarte

Em uma das mesas, uma pilha de papéis. Na outra, o computador. Na parede, um mapa do Estado de Goiás. Na minha frente, o Odesson, o Adelson, o presidente do Conselho Estadual de Saúde (CES) e da Associação das Vítimas do Césio 137 (AVC-137), tio da Leide das Neves, irmão de Ivo e Devair, um dos poucos sobreviventes da família Ferreira. O homem, que já em 1987, ainda internado no HGG, sabia dos seus direitos – e lutava por eles, mesmo que precisasse ser duro.


Hospital Geral do Inamps – 11/12/87

Prezado Maurício Vicente Rosa,

Maurício, eu gostaria de poder contar com a tua compreensão e dignidade de um homem capaz de entender a desgraça da gente.

Meu caro, o que você está fazendo não é nada humano. Pôxa deixa de ser mesquinho e me dê o que é direito e me pertence, o que me foi tirado, não estava a venda, era tudo coisa de estimação.

Minha Kombi não estava a venda muito menos era para fazer presente para pessoas irresponsáveis e incompetentes como vocês do governo, sim, roubaram! Nossos votos.

Prezado, chega de sujeiras, minha Kombi vale mais do que esta miserável quantia que você ofereceu. Eu estou sendo justo com vocês, só quero que consertem uma coisa que por negligência de vocês marajás da vida, que não vigiaram e não guardaram de maneira adequada aquela bomba que causou tanta desgraça a minha família, e que você nem imagina o que temos passado nos últimos 60 dias.

Até para escrever estou tendo dificuldades, pois estou com as mãos queimadas e me sacrifico muito. Porém para poder exigir, ainda tenho forças para cobrar o que me é de direito.

Eu poderia até mesmo exigir uma Kombi nova, porém me contento apenas com os reparos que devem ser feitos naquela que por culpa de negligentes está toda desmontada e estourada.

Sim é um carro velho, mas que me custou o suor da cara e foram muitos meses de trabalho para poder pagá-la.

Só tempo e saúde que perdi, estou perdendo e ainda vou perder vale muito dinheiro, talvez não mais vou conseguir recuperar tudo isso.

Portanto você tem três alternativas:

1º - consertar a Kombi

2º - trocá-la

3º - me pague os 195, que foi o orçamento feito; e tem que ser rápido porque a inflação está aí.

Para você e família um bom Natal e um feliz ano novo, cheio de realizações são os votos deste irradiado, contaminado, discriminado, queimado, condenado, lesado, radiodermitado e desgraçado.

Odesson Alves Ferreira.

Segundo Odesson, Maurício Vicente Rosa foi uma das pessoas responsáveis pelo governo estadual de cuidar das indenizações das vítimas. Muitos objetos, animais de estimação, casas, tudo o que foi contaminado pelo césio 137 virou lixo radioativo. “Mas nunca queriam pagar o que realmente nos era devido. Sofremos muita humilhação”, diz Odesson.

Hoje, os percalços ainda são muitos. O principal deles diz respeito à distribuição de medicamentos às vítimas – em fevereiro de 1988, o governo de Goiás criou a Fundação Leide das Neves (hoje uma superintendência, conhecida como Suleide), que tem entre suas atribuições a de prestar atendimento médico, psicológico e social, além de garantir remédios gratuitos a 169 pessoas, integrantes dos grupos 1 e 2.

“Usamos medicamentos de uso contínuo para pressão, coração, depressão. Cada vítima tem uma necessidade diferente”, destaca, ao revelar que a última vez que recebeu toda a medicação completa foi no início de 2008. Atualmente, ele tira do próprio bolso cerca de R$ 200 para combater uma prostatite (inflamação na próstata). “O remédio na Suleide está em falta”, complementa.

Adelson continua:

“O novo superintendente tem até se esforçado (o cirurgião Zacharias Calil assumiu no fim de 2007) e realizou dois pregões para a compra de medicamentos, mas não aparecem vendedores. As empresas não estão interessadas em comercializar poucos produtos de um mesmo tipo; querem vender por atacado”, explica. Mas ele não exime o governo da falta de interesse em resolver o problema. “Para mim falta vontade política. Porque se existe uma lei proibindo que o Estado gaste mais de R$ 8 mil com remédios sem licitação, a lei também existe para ser questionada. Pode se fazer um adendo, alguma coisa, porque este é um grupo específico, não existe radioacidentado por aí, só existe aqui em Goiânia.”

Sonhos, apesar das intempéries, ele ainda os tem. Odesson espera que dois projetos se tornem realidade: a construção de um Memorial do Césio, no lote da Rua 57, onde morava um dos jovens que encontrou a cápsula, Roberto Santos Alves; e a inclusão do grupo 3 no benefício da assistência médica. O Memorial do Césio seria um grande Centro de Referência Internacional, com pesquisas e estudos sobre os efeitos da radiação.

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Ela acorda cedo, por volta das 4 horas da manhã, para ouvir o programa do Barbosinha, na Rádio Nativa. Todos os dias. Levantar da cama, mesmo, só depois das 8 horas, quando vai à padaria Satélite, que leva o mesmo nome do setor onde mora há duas décadas. Toma café, arruma a casa, muda os objetos de lugar: a sapateira vai para o local do guarda-roupa, a estante com fotos e enfeites ‘migra’ para a outra sala, a geladeira ganha um novo cantinho na cozinha. Isso, quando não sente dores nas juntas. “Às vezes, parece que o nervo da minha perna está puxando”, comenta Lourdes das Neves.

À tarde, depois de arrumar a louça do almoço, a jovem senhora, de 1,40 m de altura, gosta de passar as horas no quintal, onde cuida de suas plantinhas. Tem pé de limão, de jiló, chuchu, jabuticaba. “É a minha terapia”, confessa. Mas ela também faz acompanhamento psicológico na Suleide. “Agora que o atendimento voltou para lá – antes ocorria no HGG -, eu vou toda quinta-feira conversar com a psicóloga.”

- E antes, dona Lourdes? – pergunto.

- Antes eu não ia, não. É porque lá no HGG a procura era grande, aí eu preferi dar espaço para outras pessoas, que vêm do interior. É mais difícil pra elas, são pessoas mais sofridas, com problemas de saúde.

Eu, estupefata. Dona Lourdes foi protagonista involuntária da maior tragédia radiológica no planeta, perdeu uma filha de 6 anos, um marido, que, por causa do sentimento de culpa, fumou até morrer, perdeu casa, o passado, e em alguns momentos a liberdade de ir e vir por conta da discriminação. E, mesmo assim, conserva um sentimento de altruísmo invejável. Abria mão do seu horário para pessoas que, como diz ela, “não têm nada a ver com o acidente” Ah, só para esclarecer: o HGG é um hospital estadual e, durante algum tempo, após o ano de 1987, recebia os pacientes radioacidentados para acompanhamento – os integrantes dos grupos 1 e 2. Mas sua principal função era absorver a demanda da população em geral. O atendimento médico das vítimas do césio só voltou a ser feito na Suleide no segundo semestre de 2008. “Essa sim foi uma vitória”, pontua o presidente da Associação das Vítimas, Odesson Alves Ferreira. “Mas ainda precisamos de um psiquiatra”, diz, referindo-se ao profissional em falta na unidade.

- A Suleide agora está melhor. Só tem o problema da falta de remédio.

- Quando foi a última vez que a senhora conseguiu todos os medicamentos lá?

- Foi na época do aniversário de 20 anos do acidente. Tem mais de um ano...

Dona Lourdes toma remédio para pressão e precisa de hormônio e cálcio. “O hormônio eu não posso ficar sem não, eu tô comprando. Tá 25 reais a caixinha”. Ela acrescenta: “Agora, o pra pressão eu, às vezes, pego com a minha vizinha, que consegue no Cais (unidades básicas de saúde da rede municipal). Mas é bem mais fraquinho que o meu. Aí eu tomo dois comprimidos ao invés de um. Mas não comentei com o médico, não”, emenda, com jeito de menina arteira, sem ter noção da gravidade da imperícia que comete.

O mais recente problema que as vítimas enfrentam, entretanto, está estampado no contracheque. Além da pensão estadual que recebem - cujo valor é variável dependendo do grupo a que pertencem  -, desde 2006, elas têm direito a uma quantia extra de R$ 100, por conta da lei 15.581, de 2006. “Essa lei concedeu aumento ao servidor público, e como a nossa pensão está atrelada à lei, também recebemos o benefício”, ressalta Odesson. “Mas por causa da reforma administrativa deste ano (2008), estão cortando esse abono”, completa.

Mais um entrave. Um problema. O holocausto goiano. Assim como as vítimas fatais que morreram em 1987, ele jaz esquecido na memória do povo brasileiro. Os sobreviventes definham de dor: no corpo, na mente e na alma.

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